Para que serve Audiência de Custódia?

análise à luz da Lei Anticrime

A audiência de custódia é uma garantia supralegal, conferindo ao preso o direito de ser conduzido, rapidamente, à presença de autoridade judiciária, que decidirá acerca da (i)legalidade do ato prisional, homologando-o ou relaxando-o, além de decidir sobre a continuidade do cárcere ou a substituição por medida cautelar diversa[1]. Portanto, a audiência de custódia serve como limite humanitário em casos de cárcere arbitrário ou casos de tortura.

A melhor correlação feita entre o conceito de audiência de custódia e o hodierno Pacote Anticrime[2] foi dado pelo professor Renato Brasileiro de Lima, alcunhando-a “audiência sem demora” após a prisão em flagrante (preventiva ou temporária)[3].

Aliás, uma crítica doutrinária se faz pertinente. Antes da Lei Anticrime, a Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça dispunha que a audiência de custódia valeria, outrossim, para os casos de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva (art. 13)[4].

Com a mudança, o art. 310 do Código de Processo Penal parece ter limitado tão somente à prisão em flagrante. Inegavelmente, a jurisprudência majoritária vem aplicando a audiência de custódia aos flagranteados, esquecendo-se do imperioso comando da Convenção Americana de Direitos Humanos, que expressamente estende aos presos, detentos e retidos (art. 7º, § 5º da CADH).

PREVISÃO NA LEI

A audiência de custódia tem caráter supralegal, pois está acima da Constituição Brasileira de 1988, e está elencada na Convenção Americana de Direitos Humanos, cujo art. 7º, § 5º leciona:

Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.  Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

Antes do Pacote Anticrime, a audiência de custódia era uma “órfã-legislativa”, ou seja, o Brasil não previa legalmente esse instituto. Sendo assim, a jurisprudência e o CNJ passaram a disciplinar o instituto a fim de garantir os direitos do preso.

            Como exemplo prático desse ímpeto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, submetendo-se à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, consolidou a Resolução n. 29/2015[5] que disciplinou a Audiência de Custódia no âmbito do TJ/RJ:

Art. 1º – Fica criado, no âmbito da justiça comum de primeira instância do Estado do Rio de Janeiro, o sistema das audiências de custódia.

Parágrafo único – As audiências de que trata o caput serão realizadas em Centrais de Audiência de Custódia – CEAC’s, que serão instaladas nas dependências do Tribunal de Justiça.

Igualmente, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por meio da Resolução n. TRF2-RSP-2015/00031:

Art. 7º. Fica criada na Sede da Seção Judiciária do Rio de Janeiro a Central de Audiências de Custódia – CAC -, que terá competência para a análise de autos de prisão em flagrante e para a realização das audiências de custódia, concernentes a fatos de competência das Varas Federais da Seção Judiciária da Capital do Estado.[6]

            Ademais, a iniciativa em ratificar o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos contou com ordem do Supremo Tribunal Federal em decisão que concedeu, parcialmente, medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, no sentido de determinar aos juízes e tribunais a realização de audiência de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas.

O QUE O PRESO PRECISA SABER SOBRE A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA?

O Delegado de Polícia pode julgar em audiência de custódia?

Primeiramente, a sessão deve ser presidida por autoridade judiciária. Jamais se cogitará que o feito seja norteado pelo Ministério Público ou por Delegado de Polícia. Caso o procedimento corra por qualquer deles, o ato será nulo e a prisão deverá ser relaxada. Trata-se de designação da própria Convenção, que expressamente mandou que a sessão fosse realizada por autoridade com função judiciária.

O art. 310 do Código de Processo Penal seguiu a recomendou e a dicção do dispositivo diz que o juiz, e tão somente Ele, promoverá audiência de custódia. O legislador seguiu o preceito da Lei humanitária a fim de coibir prisões arbitrárias ou ilegais. Assim, caso ocorra algo semelhante, não se esqueça do Habeas Corpus.

Conforme salientou Aury Lopes Junior, o Delegado de Polícia é incompetente pois nele inexiste a função jurisdicional, mas apenas administrativa[7]. Lógico. A Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou diversos casos nesse sentido, convergindo para a aplicação sistemática do artigo 8º, §1 da CADH, sublinhando que o preso deverá ser ouvido por juiz ou tribunal competente.

Qual é o prazo para a realização?

A Lei Processual Penal apregoou que após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia.

Entretanto, o tema é controvertido como se verá a seguir.

Pacto de São José da Costa Rica não estipula um prazo para audição da pessoa presa. Todavia, aduz que a pessoa presa deverá ser ouvida sem demora.

A tradição Brasileira serve a regra de 24 horas, malgrado a prática demonstre que esse prazo se estenda por dias, semanas, meses…e até por anos.

O importante é que o Pacote Anticrime saldou a dívida existente com o prazo da audiência de custódia, que antes era definido pelos tribunais e pela Resolução n. 213 do CNJ. Decerto, o prazo de 24 horas para realização do ato foi inserto no art. 310 do Código de Processo Penal, no bojo da prisão em flagrante.

Ainda assim, Guilherme de Souza Nucci trouxe à baila o fator da ilegalidade da prisão. Se não ocorrer audiência de custódia nas 24 horas após a prisão, esta se revestirá de ilegalidade, dando ensejo ao relaxamento e consequente libertação do preso (em regra).

Entretanto, o honorável mestre atentou para a exceção da lei: “(…) por outro lado, o legislador fez uma ressalva importante: se a prisão tiver de ser relaxada, por falta de audiência de custódia, nada impede a decretação da prisão preventiva (art. 312, CPP).[8]

É verdade, todavia a conversão do flagrante em prisão preventiva deve observar os requisitos da Lei Processual incriminadora, no art. 311. Frise-se, passado o tempo de 24 horas sem que o preso seja ouvido, o juiz só poderá decretar a prisão preventiva (i) por decisão fundamentada; (ii) a pedido do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

É preciso destacar com afinco: o juiz que decretar a prisão preventiva sem decisão fundamentada, desproporcional e/ou sem os requisitos do art. 312 do CPP responderá por crime de abuso de autoridade (Lei n. 13.869/2019:

Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

(…)

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível.[9]

QUAL É O PROCEDIMENTO NA PRÁTICA?

Incorrendo a pessoa em flagrante delito, o auto de prisão em flagrante (APF) será lavrado pela autoridade policial, e o preso será conduzido, no prazo de até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judiciária.

Comumente, o uso de algemas é erigido pela defesa como matéria de nulidade da prisão. A súmula vinculante n. 11 do STF apregoa que o uso das algemas serve somente em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros.

Contudo, a jurisprudência do STJ é cristalina no sentido de afastar qualquer nulidade da audiência de custódia por suposta violação à súmula vinculante n. 11, quando o magistrado satisfatoriamente justificar o uso de algemas[10].

Além disso, antes de falar com o juiz, é direito do preso ter audiência particular com o seu advogado, sem a presença de mais ninguém, e em local reservado, conforme art. 6º da Resolução n. 213 do CNJ[11].

Logo após o atendimento prévio com o patrono, e estando à presença do juiz, este deverá:

a.  Informar ao preso que pode ficar em silêncio durante a audiência;

b.  arguir se o preso conversou com o seu advogado antes da audiência, em local reservado e apropriado;

c.  esclarecer ao preso para que serve a audiência de custódia;

d. perguntar se ao preso lhe foram garantidos todos os direitos constitucionais, a exemplo, consultar-se com advogado, ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares;

e. indagar sobre as circunstâncias de sua prisão e sobre as condições do estabelecimento onde se encontra detido;

f. consignar em atar quaisquer queixas ou observações acerca do tratamento dado pela autoridade policial até o momento da entrevista, devendo adotar providências para tanto, inclusive as irregularidades;

g. averiguar se houve exame de corpo de delito;

h.  evitar a formulação de perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante.

            Assim, é defeso ao juiz perguntar ao preso sobre o mérito do fato, ou seja, não poderá fazer perguntas que concluam para a autoria e materialidade, que serão aventadas durante a ação penal. A audiência de custódia, aliás, serve como entrevista sem ônus acusatório.

            Ademais, é perfeitamente adequado que o juiz avalie a possibilidade de adotar medidas cautelares diversas, atentando, igualmente, para as condições pessoais do preso como a gravidez, existência de filhos, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar.[12]

            No mesmo raciocínio, após a oitiva do magistrado, o Ministério Público e o Advogado poderão inquirir o preso, evidentemente, dentro do aspecto do ato prisional, sem penetrar no bojo do mérito.

            Serve ao interesse desse estudo o art. 8º, § 2º da Resolução n. 213 do CNJ, que expõe acerca da oitiva da pessoa presa, que ficará arquivada preferencialmente em mídia, na unidade responsável pela audiência de custódia.

E SE NÃO HOUVER AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA?

Análise desse tema merece título próprio. Isso porque o leitor porventura deve estar se indagando acerca da ilegalidade e consequente soltura do preso (ou até mesmo para que serve pedir o relaxamento) que não for ouvido perante o juiz das garantias em até 24 horas da comunicação do flagrante.

Ocorre que, a lei processual pontuou exceção no final do § 4º do art. 310, capaz de embaraçar a soltura, ainda que a defesa possa requerer o relaxamento de prisão:

Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva. (grife-se)

A parte final do § 4º dispõe que, embora a prisão em flagrante ilegal dê azo ao relaxamento de prisão, esta não impedirá que o juiz, acolhendo pedido do Parquet, decrete a prisão preventiva e/ou temporária, ou ainda, medidas cautelares diversas do cárcere.

Lembremos que, a decretação de prisão preventiva deve carregar em si o fumus comissi delicti, em outras palavras, deve ostentar indício evidente da autoria e materialidade da infração penal; e o periculum libertatis – garantia da ordem pública.

Ao preso pode parecer teratológico, mas é a lei (Dura lex, sed lex[13]).

Na prática, o Parquet requer, e o juiz converte a prisão consoante os requisitos já mencionados.

CONCLUSÃO

A Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) alterou os dispositivos 287 e 310, ambos do Código de Processo Penal.

Tais alterações foram positivas a fim de regulamentar a audiência de custódia, antes entregue ao ativismo judicial.

Por outro lado, a mudança da Lei Anticrime acompanhou o entendimento do STJ.

Segundo essa jurisprudência, a alegação de nulidade da prisão em flagrante, fica superada com a conversão do flagrante em prisão preventiva, tendo em vista que constitui novo título a justificar a privação da liberdade.[14]

Em suma, a Lei Anticrime fez inaugurar a audiência de custódia no seio da lei processual brasileira. Entretanto, apesar de ter costurado brechas de outrora, o procedimento da audiência de custódia ainda é o mesmo, apesar da influência da covid-19 ter alterado sua utilização temporariamente.

Logo, serve como garantia processual global, humanizada pelo Pacto de San Jose da Costa Rica.


[1] Tanto a prisão preventiva (CPP, art. 311 a 316) como a medida cautelar diversa da prisão (CPP, art. 319) estão previstas no Código de Processo Penal.

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Menção necessária posto haver mudanças na audiência de custódia após o ingresso do citado pacote.

[3] Lima, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. 1.015 p.

[4] Art. 13. A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será

assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar

ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução.

[5] http://webfarm.tjrj.jus.br/biblioteca/asp/textos_main.asp?codigo=189337&desc=ti&servidor=1&iIdioma=0

[6] http://www7.trf2.jus.br/sophia_web/asp/download.asp?codigo=40647&obra=99055&tipo_midia=2

[7] Lopes Junior, Aury Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva

Educação, 2020. p. 969-970.

[8] Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado / Guilherme de Souza Nucci. – 19. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020. P. 1137.

[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm

[10] PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS . FEMINICÍDIO. PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PREVENTIVA. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA DE PRONÚNCIA QUE NÃO AGREGA FUNDAMENTOS AO DECRETO PRISIONAL. AUSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE. EXCLUDENTE DE ILICITUDE. LEGÍTIMA DEFESA. ANÁLISE FÁTICO-PROBATÓRIA. INADMISSIBILIDADE NA VIA ELEITA. REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA. IMPOSSIBILIDADE. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PERICULOSIDADE CONCRETA. MODUS OPERANDI E MOTIVAÇÃO DO DELITO. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. INSUFICIÊNCIA DA APLICAÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR ALTERNATIVA. VIOLAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE N. 11 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE. USO DE ALGEMAS DURANTE A PRISÃO EM FLAGRANTE JUSTIFICADO. ALEGAÇÃO SUPERADA. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NESTA EXTENSÃO, DESPROVIDO. (STJ – RHC: 91748 SP 2017/0294415-0, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 07/06/2018, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/06/2018)

[11] Art. 6o Antes da apresentação da pessoa presa ao juiz, será assegurado seu atendimento prévio e reservado por advogado por ela constituído ou defensor público, sem a presença de agentes policiais, sendo esclarecidos por funcionário credenciado os motivos, fundamentos e ritos que versam a audiência de custódia. Parágrafo único. Será reservado local apropriado visando a garantia da confidencialidade do atendimento prévio com advogado ou defensor público.

[12] art. 8º, X, da Resolução n. 213, CNJ.

[13] WIKIPEDIA: A expressão se refere à necessidade de se respeitar a lei em todos os casos, até mesmo naqueles em que ela é mais rígida e rigorosa. A expressão remonta ao período de introdução das leis escritas na Roma Antiga; a legislação, até então, era transmitida pela via oral, e, consequentemente, sofria diversas alterações por parte dos juízes, que as refaziam de acordo com tradições locais, e introduziam uma série de interpretações pessoais, na medida em que eram os detentores do poder de se referir a esta tradição oral. Com a introdução das leis escritas, passaram a ser iguais para todos – e, como tal, deviam ser respeitadas, por mais duras que fossem.

[14] (RHC 98.538/CE).

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